Thursday 30 July 2009

A Aparatosa Queda de Tony Mascarenhas

























Posso oferecer-lhe os meus serviços, meu caro, sem que me torne inoportuno? Receio que esta besta cavalar que ainda agora lhe vomitou a caldeirada de lulas nos sapatos não entenda os da sua classe. O senhor, já deve ter reparado, veio parar a uma bodega daquelas que tresanda a transpiração. Mas sabe, ao fim e ao cabo, gosto disto. Estou habituado a lidar com gente rude, entende? O meu pai, António Vítor Mascarenhas, foi criado nestes ambientes, e de certa forma eu fui também. Aos oito anos já bebia tinto com ele em tascas de renome distrital, como o "Borras" e a "Porcalheira". Nesses espaços de grande intercâmbio cultural, ensinei velhos a jogar à bisca com cartas de tarot e aprendi a arrotar sem recorrer a bebidas gaseificadas. Bons tempos esses. Mas devo estar a maçá-lo com estas estórias, não? Está a gostar?

Assim sendo, continuarei. Meu pai, como lhe contava, cresceu aqui. Brincava no meio da vinha, onde ocasionalmente fazia também as suas necessidades limpando o rabo à ramada. Digo-lhe com o maior dos orgulhos: o meu pai foi dos melhores bandarilheiros que esta pátria pariu, ponto.

Mas diga-me, deseja beber alguma coisa? Vá, aproveite, que recebi o desemprego esta semana e não descanso enquanto não o estoirar. Por falar nisso, vou pedir um pratinho de torresmos. Que lhe dizia eu? Ah, sim, já me recordo. "Tony" Mascarenhas - assim ficou conhecido o meu progenitor - nasceu ali no Arneiro das Milhariças, bem perto do estabelecimento do senhor Inácio, a "Porcalheira". Quando lá íamos, haviam pelo menos duas pessoas embriagadas que lhe batiam palmas. Era bonito. O senhor Inácio foi dos melhores amigos que o meu pai teve, um homem com um singular hálito a iscas e cuja linguagem rude desobedecia a quantas leis gramaticais houvessem. Uma autêntica lenda dos tempos pré-ASAE, era um tipo que usava orgulhosamente a lima do corta-unhas com que limpava o sarro para barrar a manteiga nas torradas, que diga-se, eram "daqui".

A amizade entre o senhor Inácio e o meu pai começou cedo. Foi na madrugada posterior a uma novilhada na Chamusca, em que andaram os dois à bulha, escavacando mutuamente os seus narizes. Ali ficaram amigos para a vida. Ambos eram grandes aficionados, gente que se embebedava com dois litros de vinho e fazia pegas de cernelha de quarto em quarto de hora ao som de um pasodoble. Mas foi em Maio de 1972 que a tragédia aconteceu. Quando tentava instalar uma antena parabólica no telhado da nossa casa, o meu pai caiu, lesionando com gravidade o pulso direito. Como resultado disto, nunca mais pôde meter bandarilhas no dorso de toiros, algo que o transtornou profundamente até ao fim dos dias. Sabe, é com saudade que recordo esse tempo. Esse e aquele em que ouvia cassetes do Cantiflas português no Citroën Ax do meu pai. Ai que bom que era.

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