Tuesday 16 June 2009

Um Touro ao Volante




















Boa memória é uma coisa que herdei de família. O meu pai, por exemplo, Armando Baraço, gostava de salientar todos os dias à hora de jantar as virtudes de uma boa memória. Ele lembrava-se de tudo - tudo mesmo - e em grande detalhe. Lembrava-se, por exemplo, da primeira vez que comeu um Kinder Surpresa e, por inexperiência ou puro desconhecimento, acabou por engolir também aquele recipiente de plástico que guarda os bonecos e é do tamanho dos supositórios utilizados por Cláudio Ramos.

Parte dessa faculdade do meu pai, tenho também eu, Vitorino Baraço, que acabo parvamente de me aperceber de que me lembro de quando fui á metrópole. Foi como se tivesse sido ontem, pena que tenha sido anteontem. Gostei como o caraças da forma simpática e atenciosa com que as pessoas me trataram. Recordo estar numa paragem de autocarro preparando-me para encher o bandulho quando um jovem roupido com umas calças de marca Resina e de tom de pele muito acastanhado que dá ideia de que vive num solário, muito atenciosamente, me apontou uma navalha que muito jeito deu para cortar um queijo de cabra Palhais que levava no farnel.

Pela cidade andei muito a penantes, cruzando-me inclusive com o famoso Aladino, que transportava a sua noiva enrolada no tapete de Arraiolos voador às costas e tinha um odor corporal que se situava algures entre o sovaco de mamute e o hálito a chamuça. Mas nem tudo foi mau. Nesse dia conheci um tipo que havia de mudar em quase nada a minha vida, embora eu não o soubesse. O sujeito chamava-se João Baptista Clemente, um taxista de 51 anos com uma particularidade: era bovino. Ao entrar no seu táxi apercebi-me de dois artefactos que lhe davam uma decoração digna de taberna miniaturizada e a motor: Em primeiro lugar, o seu portentoso par de cornos, e depois, um barrete de campino pendurado no espelho retrovisor que se encontrava devidamente decorado num padrão de sangue seco.

«Foi um forcado a quem limpei o sarampo» contou-me orgulhosamente João Baptista «Era um beto ali de Samora Correia, daqueles que os pais têm Land Rovers e penduram pullovers da Sacoor nos ombros. Não fiquei com remorsos»

Assim era João Baptista. A sua vida era uma lição para todos os touros que viviam no ostracismo do gueto que é a ganadaria. Ao contrário dos restantes bovinos machos, cuja vida passava somente por ganadarias, toureio e depois, matadouro, João decidira que aquele não era o seu destino.

«Sempre fui o mais rebelde da minha ganadaria. Gosto de me comparar com o Mico da Câmara Pereira. Ele achou que o fado não era para ele, e eu achei que o toureio não era para mim. Um gajo nasce como nasce, né? O Mico acabou por se tornar um grande músico rock e eu um grande taxista. Acho que, enfim, traçámos caminhos muito idênticos»

Nota-se no olhar de João Baptista claramente os olhos de um boi, mas de um boi transformado pela metrópole, um boi que abandonou os cascos e possivelmente recorreu a cirurgia para obter aquelas mãos humanas de onde se destaca o seu mindinho, onde deixou crescer uma fascinante unhaca que tanto pode servir para limpar o salão como a cera dos ouvidos como para coçar o cu quando as circunstâncias assim o justificam.

« O meu grande sonho pá» confidenciou-me «Foi sempre o taxismo. Esta coisa de ser parlapatão e distrair os clientes para demorar mais tempo a chegar ao destino, falar da bola, isso tudo, foi uma coisa por que sempre tive fascínio».

Mas a vida de João Baptista nem sempre foi um mar de rosas. No início teve dificuldades em adaptar-se.

«Quando vim para Lisboa foi complicado. As pessoas não estavam habituadas a ver um toiro ao volante, não havia abertura para isso. Havia muito ainda aquela ideia de que os toiros deviam era levar com farpas na lombeira, calar o bico e transformar-se em bitoques de novilho. Isso comigo acabou. Posso dizer que as pessoas começaram a pouco e pouco a ver-me com outros olhos, nomeadamente de vidro, depois de eu lhes vazar a vista com esta cornadura que ostento orgulhosamente»

João Baptista lamenta que, do sítio de onde vem, apesar do orgulho que tem nas suas origens, ninguém tenha ambição como ele teve, ou se tem, rara é.

«Sabe, o pessoal da ganadarias tem um grande problema, que é pensarem todos que só servem para dar cornadas e mais nada. Você vê nas corridas da TVI e isso, aquilo é lá vida?! Andam para ali a correr feitos parvos e a levar farpas no lombo e depois pumba, batem a bota. E com as vacas o assunto é o mesmo. A grande maioria quer é dar leite, que lhes andem a mugir as tetas o dia inteiro. De vez em quando há uma ou outra que, como eu, decidem ter uma vida diferente. Há aí agora uma que é cantora, aquela Luciana Abreu.»

E justifica o seu sucesso:

«As pessoas gostam de mim porque sou o único taxista de Lisboa que acelera quando vê um sinal vermelho, ao contrário dos outros, que mal vêem o verde já começam a abrandar.»

O tempo foge na companhia de João Baptista Clemente, talvez com o medo estereotipado de que este lhe dê uma valente cornada. Desde então, nunca mais conheci um tipo que fizesse tão bem o ponto de embraiagem quanto ele. O orgulho que demonstrava quer no seu par de cornos quer numa camisola do ex-jogador do Benfica Argel faziam dele uma figura deveras solene, que trazia reminiscências da grande besta que ele era. Seiscentos e setenta e dois quilos de peso, dez dos quais só nos genitais, oriundo da ganadaria José Maria Albuquerque Arruda de Vasconcelos. Nunca foi toureado, mas matou um forcado. E isso, meus amigos, ninguém lhe tira.