Saturday 15 August 2009

Um Lobisomem Moçambicano em Alpiarça






















Passavam três minutos das seis da tarde do dia vinte e dois de Fevereiro de 1994 quando, à porta do café O Micas em Alpiarça, parou uma Toyota Hiace de caixa aberta. O condutor - na casa dos cinquenta - apressou-se em abrir o taipal traseiro e levantar o oleado, de onde surgiram dois indivíduos. Eram eles Carlos Alberto e Pedro, dois moçambicanos respectivamente de vinte e cinco e vinte e sete anos. O sujeito que conduzia a carrinha, pelo farto bigode, camisa Sacoor de rato nas costas e “lápes” atrás da orelha trata-se claramente de um comum empreiteiro ribatejano. Naquele dia levou a Toyota e não o jipe SsangYong porque o seu filho beto o estampou contra o muro do quintal do vizinho. Coisas que sucedem. Mas sim, os rapazes.

Carlos e Pedro eram dois tipos que tinham crescido a ouvir João Maria Tudela cantar que o seu país era “alegre como a chita”. Já Portugal, onde agora residem e trabalham como trolhas, não tem os passeios muito limpos. Este país por que abandonaram a pátria cantada por Tudela é um oásis de cocó nos passeios, estradas mal alcatroadas e cantores que plagiam como quem tira catotas. Apesar disso, não se arrependem.

Ao final de um dia de trabalho, nada melhor que repôr os líquidos perdidos a acartar baldes de massa. Como tal, despediram-se do senhor Barroso (o verdadeiro nome do empreiteiro) e entraram n’O Micas. Procuraram uma mesa, sentaram-se e começaram imediatamente de um pires a petiscar tremoços, um marisco muito famoso lá na terra. Por trás do balcão, o senhor Raposo, dono d’O Micas, limpa os copos com o mesmo pano com que esfregou os azulejos bolorentos da casa de banho. Olha-os com ar de desdém.

"Eram duas minis ó chefe", pediu Carlos, enquanto limpava o suor da testa com o indicador e o guardava na virilha direita.
"Não temos", respondeu ríspidamente o senhor Raposo, que de semblante carregado, enchia agora com as próprias mãos os pires de tremoços.

Algo não estava bem. Pela primeira vez em muitos anos, Carlos sentia-se ostracizado. O senhor Raposo, sabia, fora combatente na Guerra Colonial. Raposo não simpatizava com a sua cor de pele, era isso. Mal estes pensamentos vieram à cabeça de Carlos, logo ele convenceu Pedro a levantar-se e sair dali com ele. O senhor Raposo não desaprovou, mas deixou o conselho:
"Vão pela estrada que há por aí muito bicho matreiro no mato!"

E eles lá foram, já anoitecia. Andaram muito tempo, até o manto nocturno cair sobre os seus corpos e chegar a um ponto em que não se viam um ao outro. Porque aquelas estradas também não têm propriamente boa iluminação. Não tardou muito até que ignorassem o conselho de Raposo, e saíssem da estrada. Foram ter a uma vinha.

"A falta que nos fazia agora um Petromax pá!" - admitiu Pedro a Carlos, que sorriu sem perceber muito bem onde o colega estava. De repente um barulho: Passos. Pedro Passos Coelho? Não, seria algo muito maior. Movia-se rápido entre os corredores. Obikwelu? Não, não era o Francis de certeza, que ele tem mais que fazer do que andar a correr numa vinha à noite. Até que, de repente, Pedro gritou. Um grito animalesco e estridente, um grito de horror, de quem viu o Carlos Castro nu. Algo se movimentava agora na sua direcção.

Carlos começou a correr, a respiração ofegante, o mato denso, as havaianas a caírem-lhe dos pés. Mil imagens lhe vieram à cabeça: as trombas da Paula Bobone, as trombas da Paula Bobone, as trombas… E quando parou, sob a luz da Lua Cheia, um bicho que se não era um lobo grande como os cornos vou ali e já venho. Carlos ali permaneceu de boca aberta, como quem come um Cornetto com gulodice. E o lobo olhou para ele com aqueles olhos grandes de quem não sei o quê. E Carlos olhou para o lobo e viu que ele tinha uma pila pequenina. E o lobo não gostou e deu-lhe uma trolitada na tromba. E fugiu.

Dia seguinte, pela manhã, Carlos sentiu o sol bater-lhe na cara. Sentiu um cheiro que imediatamente reconheceu, a ala hospitalar. E ouviu o tossir tabagista de uma velhota. Uma velhota que tinha algália e catarro como nunca visto. Uma velhota que a dada altura se engasgou com a sopa e ficou com um fio de caldo verde pendurado numa narina. A enfermeira chegou, e sem reparar na velhota e na sua narina, deu as boas novas a Carlos:

"O senhor parece que foi vítima do Chupa-Meloas" disse, enquanto abria ainda mais as persianas da janela.
"O Chupa-Meloas?" respondeu Carlos, tentando evitar o sol nos olhos.
"Sim, é um bicho lá de Alpiarça, que ataca as frutas a meio da noite antes de ir para a discoteca".
"E o meu amigo, sabe alguma coisa dele?"
"O seu amigo está bem, bateu a bota. O Chupa-Meloas pensou que a cabeça dele era uma fruta e deu-lhe umas trincas".
Meu Deus, o Pedro morrera! E ainda bem! - pensou Carlos - que ele era chato como a potassa e cheirava que nem um burro a transpiração .
"Que hospital é este?" perguntou Carlos, evitando falar da velha ao seu lado.
"Santarém, meu menino. Terra de toiros, vinho, gente rude e que atura o Moita Flores".

O coração de Carlos encheu-se de satisfação - estava num sítio onde não tinha nada a temer, pois a cada esquina se encontram ora indivíduos cheios de bazófia ora agentes de autoridade ébrios.

Anoitecera. A velhota dormia agora o sono dos anjos, após jantar filetes com arroz. Ou dormia ou estava morta, uma das duas. Carlos acordou sobressaltado, com o corpo a ferver. Os olhos pareciam querer saltar-lhe da cara. Todo o corpo lhe começava a queimar, as mãos, pés, pernas, braços, até que cada poro era um vulcão e Carlos começou a gritar a plenos pulmões, sem nunca incomodar a velhota. Atirou-se para o chão, rasgou as roupas, e debaixo delas, do peito ao pescoço, uma enorme cicatriz deixada pelo monstro que o atacara.

E assim começou, sob a luz da Lua Cheia, a transformar-se. Cresceram-lhe as mãos, as unhas das mãos; os pés, as unhas dos pés; os ombros alargaram, os braços alongaram, a pila encolheu. O seu queixo ficava agora ainda mais saliente - querendo lembrar o da Ana Gomes - e cresceram-lhe uns dentes que bem precisava, pois já só tinha dez. Mas sobretudo, cresceram-lhe pêlos por tudo quanto era sítio. Por momentos, o narrador fica na dúvida se está a relatar a transformação de um indivíduo num lobisomem ou em Tony Ramos. Na noite de breu ergueu-se, mas não a voar. Dirigiu-se à recepção e telefonaram-lhe para a Scaltaxis, partindo minutos depois para Alpiarça com o senhor Jacinto Barbosa. Embora experiente nestas lides, nunca Jacinto tivera oportunidade de transportar um lobisomem:

"Já transportei muita gente, caramba. Até a Leopoldina e a Popota, que me fizeram um lap-dance porque não traziam dinheiro para pagar o serviço. Não gosto muito de avestruz, mas como dizia o meu pai, o que vier marcha".

Chegaram à porta d' O Micas. Eram dez horas, sensivelmente. Lá dentro ouvia-se um bonito ritmo reggaeton e cá fora três putos vestidos com calça, camisa e sapato Timberland bebiam shot's de Gold Strike. O senhor Jacinto disse que não era preciso Carlos pagar, tal era a singularidade do passageiro. Então partiu, buzinou e Carlos uivou em modo de resposta. E Carlos irrompeu pela porta do café. Ao balcão, o senhor Raposo - no seu habitual tom ameaçador -mascava um palito por debaixo do seu hirsuto bigode. Tensão por todo o estabelecimento, um silêncio de morte. De repente, o senhor Raposo arrota. Jantara iscas. Previsível.

Carlos aproxima-se, passo a passo, do balcão. O senhor Raposo não se move, e olha-o nos olhos ao mesmo tempo que masca o palito e coça a virilha direita com a unhaca do mindinho.
"Quero uma mini ó sachavôr!" diz Carlos, numa dicção demasiado perceptível quer vindo de um trolha, quanto mais de um lobisomem. E o senhor Raposo, pegando o pano de limpar os copos do balcão e deitando-o no ombro direito, reafirma:

"Não temos minis, já te disse pá. Mini é bebida de pandeleiro. Aqui no Ribatejo a gente bebe é tintol".
Carlos fica estupefacto.
"Então mas você não é racista?"
"Racista, eu? Tá maluco o bicho. Não digo que nunca tenha tido chatices com pretos, que tive. Olha, uma vez andei à porrada com um porque ele pôs uma mina num sítio onde um rapaz depois rebentou uma perna. Não que eu tivesse interessado na perna, mas tinha guardada a minha colecção de cromos do Eusébio na bota do gajo e foi tudo pró galheiro"
Carlos, no meio daquele semblante canídeo, sorriu. E babou-se um pouco.
"Olha lá rapaz, tu queres emprego?" disse o senhor Raposo "tens é de cortar essa guedelha que pareces um lobzóméne".
Carlos sorriu de novo perante tamanha generosidade.
"Pode ser senhor Raposo. E já agora, um tintol".