Thursday 13 January 2011

A Visão Profética de Cicciolina Gordo




















O sol penetrava a vidraça, atravessando os ares do quarto numa coluna de luz. Na cadeira da secretária onde tinha o hábito de se sentar para escrever, estava adormecido Cicciolina Gordo. Interrompendo-lhe esta luz o ressonar, levantava-se ele agora da cadeira e deslizava prontamente a cortina, deixando-se entregar à misericórdia destes raios solares. O escritório transformara-se numa selva de livros espalhados e anotações e comida estragada. Faz duas semanas que não cortava a sua barba suja de sopa. As unhas, há meses.

"Estou bloqueado", pensava Cicciolina Gordo, enquanto abria a janela do escritório e acendia um cigarro.

Assim tinha passado os dois últimos meses, entregue às intermitências do desassossego, tresandando a sua casa a algo entre o azedo, o podre e virilhas por lavar. A escrita não lhe saía, e cada vez mais ele se via como um ser humano adiado nos labirintos da sua própria imperfeição. O bloqueio criativo revela-se, em períodos prolongados, fodido.

Assaltavam-no, como nunca, pesadas dúvidas existenciais. Seria o universo, ao contrário do que pensamos, uma criação irracional? Seria o próprio deus que este mundo criara, uma entidade conflituosa e desordeira, como os forcados que frequentam a Feira da Golegã? E se assim fosse, se este deus criador não passasse no fundo de um forcado, será que usaria barrete e calças daquelas que apertam os tomates e tentam escapar pelo rego do cu acima? Estes pensamentos impediam Cicciolina Gordo de viver em paz a sua vida, quando a inspiração se ausentava.

Certa vez, ao acordar, sentiu uma luz. Uma presença. Dormia na cama do seu quarto. Olhou o despertador - mas eram ainda três da manhã. Então, levantando-se da cama, a luz forte e rosada penetrou-lhe nos olhos até nada haver que restasse do seu quarto. A realidade dissolveu-se num nevoeiro e transfigurou-se num mundo de energia pura e de formas rarefeitas.

Pouco a pouco, naquela visão edénica, as formas rarefeitas tornavam-se objectos pertencentes a um lugar que Cicciolina Gordo bem conhecia - o café da biblioteca. Ali estava o balcão, os croissants do dia anterior, as mesas todas vazias. Mas ouviu uma voz:
"Cicciolina Gordo..."
Algo ou alguém chamava o seu nome. Mas como, se ninguém ali estava?
"Cicciolina Gordo..."
A voz... parecia vir de uma mesa do canto. Ele aproximou-se. Passo a passo, olhando em volta, chegou perto da mesa. Num prato, uma tosta mista ainda fumegava, acabada de fazer.
"Cicciolina Gor - Ah, estás aqui."

Sim, a tosta mista acabara de falar.
"Mas como, se ainda não fumei nada hoje nem meti ácido marado?", pensou Cicciolina Gordo.
E assim constatou o óbvio:
"Mas... tu és uma tosta mista!"
Nisto, a tosta principiou a flutuar, e ultimou:
"Quanto muito, terei o aspecto de uma tosta mista, mas sou de facto Deus. Mas podes chamar-me PUTA."
"Porquê PUTA," - questionou Cicciolina Gordo - "Ainda por cima com maiúsculas?"
"Isso é porque deixei o Caps Lock ligado, mas esquece lá isso. O que importa é que sou Deus. Ou PUTA, como preferires."
"Mas como? Como pode Deus ser uma tosta mista?"

A paciência de Deus é infinita. Ou era, até aqui.
"Opá cala-te. Não te lembras que apareci a Moisés num arbusto? Agora apareci numa tosta mista porque, sei lá, apeteceu-me. Arbustos que ardem perpetuamente é cena buédesda velha mén, tipo velho testamento e isso."
"Porque falas comigo então? Será que aquele ácido marado que o Navalhas me arranjou na viagem de finalistas do 12º me fritou a mioleira?"
"Não, Cicciolina Gordo" - disse PUTA - "Trago-te uma missão profética."
"Missão profética? Mas eu sou um simples escritor..."
PUTA olhou Cicciolina Gordo com os olhos ternos que só uma tosta mista pode fazer, e disse-lhe:
"Não, não és um mero escritor. És o autor de obras tão singulares como "Sonham os Forcados com Touros Mecânicos" ou "Os Três Testículos de Palmiro Astúcia". "
No meio de todo aquele queijo flamengo e fiambre rançoso, PUTA trouxera-lhe a boa nova.

"O meu reino está próximo. Vem aí o Messias. Não o reconhecerás à primeira, pois trará vestidos trajes comprados na feira de Santana. Marcas contrafeitas. Uma camisa Sacoor com um rato enorme nas costas, mais propriamente. E ele vem espalhar a minha palavra."
Cicciolina Gordo nem queria acreditar - esquecera-se de ir meter o Totoloto, e agora que estava na presença de PUTA, não ficava bem sair da alucinação só para isso.
"Calou! " - gritou Deus. Perdão, PUTA, interrompendo os devaneios de Cicciolina Gordo.
"Como eu dizia, falo contigo hoje porque foste escolhido para anunciar a chegada do Messias. Cada palavra tua e dele serão minhas, e poderão conter asneiredo. Também gosto de mandar a minha caralhada de vez em quando, sabes? Pronto, no fundo é isso. O universo onde vives é uma ilusão criada por mim há triliões de anos enquanto o Paraíso estava em obras. Sabes como são os trolhas de hoje em dia, fazem ronha e nunca mais acabam a obra, para esmifrar mais um bocado um gajo."

"Não temas, a minha sabedoria infinita servir-te-á de guia. Podes comer rameiras sidosas de bom grado que evitarei o teu contágio. Os dias dos poderosos chegaram ao fim, e começam os dos sabedores. Se falares, não temas, e fala alto como a tua sogra que era peixeira, pois estarei sempre contigo. A não ser que esteja a dar um bom jogo da bola, claro."

A luz penetrava de novo nos olhos de Cicciolina Gordo, que voltava ao quarto, sentado na beira da sua cama. Olhava as suas mãos e tocava nos móveis, certificando-se de que voltara à sua realidade. Teria tudo aquilo sido um sonho? Uma alucinação? Não interessava. A casa continuava a cheirar a azedo, podre e virilhas por lavar. Mas Deus era um tipo porreiro. Uma boa PUTA.

E pela primeira vez em meses, acendera-se na vida de Cicciolina Gordo uma chama de esperança, e entre a barba suja de sopa, ele sorriu.

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