Wednesday 10 March 2010

Vida de Dartacão





















No horizonte havia um vazio, como no coração de um homem cruel. O mesmo Deus que criara em sete dias o universo, entretinha-se agora a observar as vidas destas gentes de faces esculpidas pelo remorso e sem esperança. Sentado debaixo do sobreiro, tentando escapar a um sol infernal, Dartacão lançava ao ar um tazo que guardara dos tempos de miúdo. Um tazo que para ele significava bem mais do que isso. Era símbolo de todos os bons momentos que passara com o seu primo Tadeu na infância. Momentos que ainda vivem nas suas recordações e num cantinho do seu coração, quando a memória o visita com os episódios em que ambos se entretinham a enfardar pacotes de batatas fritas só por causa daquele tesouro, o matutazo. O matutazo, circular e fino objecto plástico tido por muitos como um símbolo do hediondo marketing feroz, era para Dartacão um mapa da felicidade que um dia ousou possuir.

O bafejo quente que inunda o ar sufoca-lhe os pulmões e o pensamento. No lançamento aéreo do tazo, calculava as suas hipóteses: cinquenta por cento de probabilidades para cada face. Cara ou coroa. Ganhar ou perder. E ele perdeu.
Já não sabe muito bem quando tudo se passou. Ou melhor, sabe, mas tenta encontrar explicações outras que o livrem do peso da responsabilidade. Culpa a equipa de Malta nos Jogos sem Fronteiras e o Eládio Clímaco; culpa o bigode do Chalana. O Egas e o Becas. O Poupas. Sempre sabendo, no mais profundo de si, que a culpa é sua e de mais ninguém.
Ao cair da tarde, no dantesco e flamejante horizonte, vê aproximar-se uma figura. Incapaz de distinguir de quem se trata e não tendo trazido os óculos, opta por espreitar pelo gargalo e para o fundo de uma garrafa vazia de Vat 69 que terminara. Isto com 38 graus à sombra.
«Sou Batroclismo Roupinha homem. E você quem é?»
Esta seria muito provavelmente a ocasião indicada para Dartacão perceber a identidade do misterioso indivíduo - estivesse ele sóbrio.

Deitado sobre o chão acimentado do exterior do café "O Merdas", jazia agora Dartacão, expondo a sua face entristecida a uns ultra-violetas muito pouco simpáticos. Ali estava ele, só, enquanto no interior d'"O Merdas", Batroclismo Roupinha tentava persuadir os donos a deixarem aquela antiga personagem de desenho-animado vomitar na sanita da casa de banho.
Batroclismo acabara de chegar de Lisboa. Lá viveu e trabalhou durante uns longos vinte anos, sempre atulhado de trabalho e filhos e algumas prostitutas pelo meio. Até ao dia em que o seu rabugento sogro, em boa hora, faleceu. E com isto sua esposa herdou uma pequena quinta no Alentejo, onde havia uma casita, um terreno, e nesse terreno o sobreiro debaixo do qual Dartacão emborcava o remorso em goles de uísque.
«Aqui não vomita ninguém. Ainda agora faz três meses que a minha esposa limpou a casa de banho, não quero cá o Wc Gato com pingos de vómito.»
Muito aguentara Batroclismo, nos anos em que trabalhara nas Finanças. As intermináveis papeladas. Os colegas com micose no escroto. A gente rude. Mas nada que se comparasse a isto.
Nada que se comparasse à recusa de contribuir para a restituição a um simples homem (e cão) da sua dignidade. Imperdoável.
Foi assim que Batroclismo, inevitavelmente, se lançou feroz sobre o dono do café, com a pretensão de lhe amassar aquelas pouco bonitas fuças. Mas o que acabou por no fim de contas suceder ao pobre homem foi estar, passado pouco mais de duas horas, numa cama de hospital.
Com dois olhos enegrecidos, nariz amolgado e maxilar dorido, o antigo trabalhador das Finanças dificilmente passaria na inspecção periódica. Adormecido numa cadeira ao seu lado, ressonando ainda resquícios de uísque, estava Dartacão.

Como que ressuscitando de uma maneira muito esparvoada, o magoado cara-de-cão acordou do seu coma embebido. Olhou à sua volta e viu apenas as pálidas paredes daquele quarto pintadas de cocó ao pé da janela. E viu também aquele homem que se encontrava ali, ao seu lado, e que ele não reconhecia.
Foi então que uma enfermeira, ostentando um bigode à Cantiflas, lhe contou tudo. E ele viu o coração apertar-lhe no peito, sorriu ao magoado Batroclismo, e voltou ao café.

Como vira trezentas e tal vezes nos filmes do Chúque Nórres - assim lhe chamava - Dartacão meteu a pata na porta da entrada para a partir. Por mero azar, a porta que era de vidro deixou entrar apenas a perna do canídeo, aproveitando para lhe deixar também nela um razoável golpe.
O dono do café aproxima-se dele em passos muito rápidos, quase em corrida e eis que ele se lembra da lição de Batroclismo - coragem. E lembra-se também que tem na sua posse uma espada, que usa para furar o olho direito ao gajo do café. O tipo, meio desorientado, bate com os cornos na vitrine e acaba por desmaiar. Dartacão, embainhando a espada, deixa-lhe uma sugestão.
«Agora vai lá escrever Os Lusíadas, meu merda!»
Na cama de hospital, Batraclismo abria os olhos, a custo. Ao seu lado uma figura que reconhecia, ligeiramente mudada. Dartacão, o mesmo que vira horas antes agarrado à garrafa de Vat 69 num farrapo, vestia agora o seu fato de mosqueteiro. Fizera também a barba.
Dartacão contou-lhe então a sua história. Contou-lhe como viu Arãomis beijar Julieta. Contou-lhe que apesar disso a compreendia, porque a amava. Contou-lhe que nunca teve coragem de contar a Julieta o tanto que a amava, por as palavras serem escassas para definir tais sentimentos.
Batraclismo ouviu com redobrada atenção as palavras daquele panhonha, facultando-lhe de seguida uma valente sarda. Dartacão compreendeu o gesto, e fez-lhe promessas de encontrar Julieta. E de lhe dizer o que nunca antes lhe tinha dito. Porque ela era, e seria sempre, a predilecta do seu coração.

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