Saturday 23 January 2010

O Homem-Cavalo

















No quarto estava ele, como na sepultura. Agarrando a almofada, de olhos cerrados, sonhava acordado abraçar o amor que há muito perdera. Na ressaca, Grandilécio Barata, sangrava internamente a ferida desse nunca conquistado, desse distante e inalcançável amor. Às vezes, quando pelas nove da manhã batia à porta das pessoas para vender livros das Selecções do Reader's Digest e o agrediam com uma colher de pau, pensava na brevidade de tudo: da vida, do amor e de um Kinder Bueno fora de prazo que comera e agora lhe atacava ferozmente os intestinos. E assim continuara, perseguido no reflexo do espelho por essa figura que o tornava diferente de todos os outros e era a sua: a do homem-cavalo.

O homem-cavalo, apesar de primo de Minotauro e Unicórnio, não se trata bem de uma figura mitológica. Há quem diga que a raça resultou de uma experiência genética no laboratório do Dr. Morais, na ilha do Pico, mas não há dados que o comprovem. Uma outra teoria, explicitada pelo respeitável professor da Universidade de Coimbra Desperdício Henriques, é simples: um bêbado teve sexo inter-espécies com uma égua. E sobre isso não fará o narrador quaisquer juízos de valor, pois bêbados há que tenham feito sexo com criaturas bem mais hediondas, como Odete Santos. Grandilécio nasceu, cresceu e sempre foi homem-cavalo. Com orgulho, tanto usava a boca para mandar piropos às gajas como as patas traseiras para atingir, por intermédio de coices, um servente de pedreiro com quem não simpatizava. Nunca foi um aluno brilhante, e ainda hoje não sabe distinguir o seno do cosseno. Mas verdade seja escrita, essa merda nem o narrador sabe. Actualmente, Grandilécio Barata e Minotauro Gonçalves são os únicos espécimes restantes da família dos homens-cavalo. O seu primo, o Unicórnio - esse espécime único - foi assassinado na Idade Média por uma jovem coleccionadora de Barbies. Segundo reza a lenda, a jovem, armada de catana, decapitou-o só para tirar o chifre, que na altura lhe pareceu bastante um Cornetto.

Aos trinta e dois anos, Grandilécio pensava em tudo o que, pela falta de audácia, perdera. Pelo peso do remorso ancorado ao seu peito compreendia, enfim, que o tempo não reconcilia tudo. Pressentia terminar os seus dias em decadência, tal qual um seu amigo faquir, a comer pratos de pirex. Por isso levantou-se da cama, limpou as lágrimas e entrou na casa da banho. Lá, deu de caras com o seu primo Minotauro a dançar todo nu aquela música do bate forte o tambor eu quero tic tic tic tic tac. Mas não o censurou - atingiu-o simplesmente com um taco de críquete nos dentes , pegou nas chaves de casa, e saiu. Dez da manhã de sábado e as ruas desertas, com os jovens em casa a ressacar a ingestão de shot's e uísque do Lidl. Ele também já fora jovem, em tempos, quando vomitava nos ténis dos colegas a caldeirada de lulas que a sua mãe tinha feito para o jantar.

Certa vez, no intervalo para o almoço do seu dia de trabalho normal, Grandilécio deslocou-se ao Jardim de Vítor para almoçar. Da sacola pancona que sempre o acompanhava, tirou uma lancheira. Lá dentro, num tupperware, dormiam embalados uma sandes de rissol e um Capri-Sonne. Olhou à sua volta: viu pássaros, viu as folhas caídas e um drogado. Mas viu também uma rapariga, num banco do jardim, na companhia de um livro. A sua pele, lembrava não só o rabo de um bebé após polvilhado de pó de talco, mas também uma má metáfora. Sentou-se ao lado dela, e ela ali permaneceu, indiferente. Nem o facto dele comer à labrego, de boca aberta e bocejar enormes arrotos sem recorrer a gasosa, a incomodou. Continuou a leitura. Mas ele, para lhe tentar chamar a atenção, sacudiu as migalhas do papo-seco para o livro. E isto, por parvo que parecesse, resultou. A rapariga, tirando os olhos do livro, movimentou encantadoramente a cabeça na sua direcção. E aí o viu, Grandilécio, o homem-cavalo. Foi terror à primeira vista.

Começou a correr desalmadamente pelo jardim, passando por uma majestosa gaiola de rolas que fizeram "cucrrru!" à sua passagem. Ele, por outro lado, perdeu-lhe o rasto. Entristecido, continuou a comer a sandes e a tentar descobrir, já agora, que raio de merda era aquela dentro do rissol, com textura de carne mas sabor a marisco. "Os Homens-Cavalo Também se Abatem", lembrou-se, era o livro que a rapariga lia. Desgostoso e com azia, foi ao snack-bar "A Pevide" pedir um copo de água para beber um Eno. Foi então que, pouco tempo depois, ouviu um grito lá de fora. Quase se engasgando, Grandilécio acudiu ao grito feminino de uma senhora a quem haviam roubado a mala. O bandido era um homem-cavalo.

"Mas como?", pensou, enquanto arrotava nitidamente a rissol e Kinder Bueno fora de prazo. E desatou a correr atrás dele. Daí, o narrador percebeu que não sabe muito bem para onde o dito bandido foi e ordenou a Grandilécio que parasse. Nisto ele, tentando perceber que raio lhe estava a suceder, ouve um estalido. Sente, atrás de si, um bafejar equestre e, virando-se de mãos no ar, olhou outro homem-cavalo que não era ele - não era um espelho.
"Quem és tu meu sacana?", disse, numa fala digna de novela da TVI.
O outro, afastando-se meio confuso, relinchou e deu-lhe um tiro na perna. Depois fugiu.
Era a última vez que Grandilécio veria outro da sua espécie. O bandido viria a ser encontrado na linha do comboio, atropelado. Ao que parece, encontrava-se a jogar o último nível do Cráche Bandicute numa consola portátil.

Durante um sonho, começou a sentir calor na cara e viu uma luz muito forte povoar-lhe o acordar. Pensou tratar-se da enfermeira abrindo a cortina da janela, mas era ela afinal a queimar-lhe a cara com um isqueiro.
"Foooooodaaaaaaaaaaa-seee!", relinchou Grandilécio. Deve ter doído esta judiaria.
A enfermeira continuou, pois, mas agora a abrir a janela, a deixar o sol entrar. E abriu a cortina do quarto, ficando aquele cabisbaixo homem-cavalo na presença de uma inigualável beleza: a mulher que de si fugira enquanto comia um rissol bolorento. Ali estava ela, na cama do hospital, dormindo como um anjo e ressonando como um porco. O isqueiro da enfermeira acordou-a. Gritou um palavrão também. Então, de repente, houve-se um enorme estrondo que põe todo o piso em alvoroço - no quarto de Grandilécio, partindo a janela, entra o Homem-Aranha, calçando uns ténis Sanjo.
"Ó homem tu deixa-me esconder debaixo da tua cama que ela vem aí!"
"Mas quem é que vem aí chefe?"
"A minha mulher, pá, vá lá".
Grandilécio deixou-o esconder. Pela primeira vez em muitos anos, sentira-se útil. Ainda mais tratando-se de um super-herói... Era enorme a responsabilidade. A sua cara de cavalo movimentou-se para a esquerda e olhou-a, à mulher da sua vida, com uma sobrancelha queimada pelo isqueiro. Naquele pequeno instante, sentiu-se próximo das estrelas, dos planetas, de todo o universo, o coração acelerou o compasso e sorriu-lhe, a ela. Mas sorriu também porque acabara de soltar uma bufa da qual sabia o Homem-Aranha ser incapaz de suportar o cheiro.

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