Friday 4 February 2011

Inimigo Imaginário #3




















Há dias pensei no Vítor Barraca que andou comigo nos sexto, sétimo e oitavo anos. Lembras-te dele? Sim, de facto, é difícil apagar da memória uma personagem daquele calibre, com um hálito de fazer inveja ao Godzilla. Era um tipo sempre disposto a ajudar, normalmente violentando os ombros dos outros colegas com valentes murraças. Hoje em dia, com todas as modernices que existem, chamar-lhe-iam "bully". Mas o estrangeirismo não assentaria nem seria capaz de descrever tudo aquilo que o Vítor representava. Aquele suor hediondo, a fraca literacia e o sorriso que deixava antever umas gengivas que aparentavam padecer de escorbuto, nada disso cabia na palavra "bully". Porque o Vítor não era apenas o "bully" clássico dos filmes, que violenta, oprime e chantageia.

Quer dizer, ele fazia isso tudo, mas aproveitava para chatear os outros e volta e meia, cuspir. Digo cuspir naquele sentido de o Vítor ser incapaz de falar sem soltar no ar humildes gafanhotos de cuspo. Já quanto a cuspir mesmo, isso era mentira. Uma vez, lembro-me agora, ficou com o cuspo preso no queixo - muito à semelhança do que aconteceu ao Pillas-Boas aqui há tempos. Mas coisa que o Vítor tinha de bom era uma assinalável pontaria, que dava bastante jeito em singelas e mundanas actividades, como atirar calhaus às pessoas.

Sabes que super-poder sempre desejei? Aquele que o Quénu Ríves tem no Má Trics, de parar as balas antes de ser esburacado. Iria usá-lo não para parar balas mas para pôr termo aos perdigotos com que o Vítor nos atingia na face. Que saudades desses tempos, de ver o Vítor chafurdar na lama cada vez que chovia. Não era bom nem mau, sabes? Nos tempos áureos do cavaquismo, era o que havia. Mas cada vez que nisso penso, aperta-me o coração, os olhos enchem-se de lágrimas e as calças de uma urina alaranjada.

Uma memória que tenho bem vívida desses tempos foi quando, num intervalo da manhã, o Vítor manifestou a sua inteligência. Dirigindo-me a ele em tom de ofensa, disse, "És mesmo heterossexual!". Indignado, o Vítor perseguiu-me por toda a escola, não descansando até me esmurrar os ombros de modo prazeroso. Quando lhe expliquei o significado da palavra "heterossexual", soltou um "ah!" e foi-se. Boa cena, dirias tu. Mas não, deixas-te ficar caladinho, a fazer de conta que não existes e o caralho.

O passado já não volta; nunca voltou. E ainda bem, sabes porquê? Porque não sei se aguentaria visionar novamente todos os episódios da novela Anjo Selvagem. Aquilo, parecendo que não, maçava.

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