Sunday 12 September 2010

A Tabacaria























A primavera acabara de chegar, e com ela, os calções, as alergias e alguns sovacos por depilar. No ar há um distinto odor a marisco - ou pelo menos aparenta-o - que pode afinal ter a sua origem em meia-dúzia de virilhas pouco dadas à higiene. Ainda assim, nas grandes narinas de Abílio Esteves, nenhum desses odores tem autorização para entrar. À entrada da sua tabacaria Abílio degusta, inspira e expira, o fumo de uma cancerígena cigarrilha. Os novos tempos, repletos de ASAEs e corporações derivadas, impedem que a sua tabacaria cheire, efectivamente, a tabaco.

Desde miúdo que aprendera com o seu progenitor as virtudes que o fumo de um cigarro encerrava. Lá em casa qualquer hora servia para se acender um cigarro. O seu pai servia-se dele como de um ambientador, para disfarçar os mais variados cheiros, da flatulência ao malogrado chulé. O pai de Abílio tinha porte robusto e pulmões pretos, e sempre se recusou a utilizar incensos. Era "coisa de monhés," dizia ele. E assim era. A cada flatulência, a cada arroto, a cada discurso de Salazar, Barbitúrio Esteves respondia com um cigarro. Na clandestinidade vivera o seu pai, e agora, também ele assim se sentia, como um clandestino, um fora-da-lei.

Cada cigarro fumado justificava o olhar atento sobre aquela sociedade robotizada e dava-lhe tempo de sobra para observar os pormenores. As pastilhas elásticas coladas na calçada, os trolhas de manga cava, a mulher que mantinha diálogos filosóficos com o seu cão. Era aquele o seu mundo, o túnel através do qual via a realidade dos dias monótonos, com os olhos avermelhados pelo fumo do tabaco e volta e meia uma ganza.

Toda a gente tem um sonho. Seja cortar as unhas ou fazer higiene oral por uma vez que seja, todos sonham. Muitos têm mesmo sonhos húmidos e vêem-se obrigados a mudar de cuecas pela manhã. Não era o caso de Abílio. Os seus sonhos eram consistentes, secos e perfeitamente alcançáveis. Tratava-se, aliás, de apenas um sonho: abrir uma casa de putas. Não, não era um "bordel". Abílio chamava-lhe "casa de putas" e explicava o motivo. Porque a palavra "casa" atribui à coisa um ar de familiaridade, como o miúdo na Cerelac e o cão nos Chocapic; para ele, "casa de putas", gerava no incosciente do cliente a fátua ilusão de que ali ia para constituir família. Pena que não. Tudo estava cuidadosamente planeado. Brasileiras e Ucranianas, sendo que as primeiras haveriam de ter nomes de personagem de novela dos anos 80 e as segundas dotes de patinadora. Preparava ele, no seu sonho, uma casa de Isauras, Tietas e Grovetkas. E Abílio queria ser, no fim de contas, o Rei do Gado.

Todos esses pensamentos de uma vida a gerir putedo geravam em si uma enorme esperança. Por isso os partilhava com o seu melhor amigo, Otomano Mendes. Otomano começou como empregado de balcão, carpinteiro e homem do lixo. Um dia descobriu finalmente a sua vocação - escritor - quando recebeu o prémio literário de Prepúcio de Cima pela sua obra "A Dama das Auto-Estradas". Desde então, escreve contos eróticos para a revista Maria e cenários apocalípticos para a revista Sentinela. Ao balcão, ambos liam jornais desportivos intercalados com a revista Gina. Era uma das questões pela qual Abílio sentia maior desprezo: a de uma tabacaria ter de vender revistas, e não apenas tabaco, para sobreviver.

«Já te falta muito?», perguntou Otomano.
«Pra quê?», respondeu Abílio.
«Para aquilo das gajas, pá», explicou Otomano, folheando o jornal.
«Mais uns mesitos e a coisa compõe-se», disse Abílio, espreitando por cima do jornal. «E o livro, já tem título?»
«Ando a pensar num - "O Ataque dos Dinossauros com Herpes"», disse Otomano.
«Parece bonito».

Os dias na tabacaria eram sempre iguais e Abílio sentia que não era nada, nunca seria nada, e não podia querer ser nada. À parte isso, fumava cigarros para disfarçar os peidos.
Quarta-feira, de manhã cedo, e Otomano espera à porta da tabacaria por Abílio. Já faz meia hora que ele a devia ter aberto. "Algo deve ter acontecido", pensa Otomano. Então, o carro de Abílio estaciona mesmo à sua frente com o amigo lá dentro. De vidro aberto, fumando um cigarro e ouvindo o tema "Vai ter que rezar" de José Malhoa, encontra-se Abílio. Otomano aproxima-se.

«Então, pá?», diz-lhe.
Abílio tem o ar pesado de quem acabou de fazer amor com uma Simara quando era gorda.
«Assaltaram-me a casa», diz Abílio.
Otomano deixa escapar um "foda-se", e senta-se no passeio, pousando o cu mesmo numa pastilha elástica.
«Levaram-me o dinheiro todo, os cabrões.»
«Das putas?»
«Sim»
«Foda-se»

Arrastando-se como um cadáver com cheiro a tabaco, Abílio saiu do carro e fechou-lhe a porta, que dava também para os seus sonhos. "Falhei em tudo," pensou, e voltou à rotina da tabacaria. Ali permaneceram, ele e Otomano, fumando cigarros à porta da loja. Calados, deixavam-se julgar pelo imponente sol e contribuíam, enquanto pudessem, para o aquecimento global.
Tudo voltara à monótona normalidade no mundo de Abílio: o fumo do tabaco continuava a ocultar os seus hediondos peidos, as pastilhas elásticas continuavam coladas à calçada e os trolhas continuavam de manga cava. "Que mundo mais pílulas", pensava Abílio.

Estava uma manhã coçando levemente os tomates com um busca-pólos quando, sabe-se lá porquê e de onde, um adolescente de mochila às costas entra na tabacaria e imediatamente desmaia. O seu trombil, a julgar pelas amolgadelas e nódoas negras, havia sido amassado por alguém com razoável força de punhos. E decerto, alguma pontaria.
Abílio tomara a decisão, inicialmente, de o deixar apodrecer ao sol. Então Otomano chamou o amigo à razão, e Abílio acabou levando-o para sua casa. Colocaram-lhe gelo nas nódoas negras e betadine nas feridas. Ali ficaram um bom bocado, olhando o rapaz de tromba amassadas, enquanto fumavam um SG Ventríloquo cada.

Abílio levou-lhe a mochila para o seu quarto e encostou-a a um canto. Quando ia a fechar a porta, notou algo no chão - uma nota de cem euros. Voltou a entrar no quarto e pensou de onde ela viria. Olhou a mochila do miúdo, e não se deteve: abriu-a de imediato. Lá dentro encontrou o que mais temia, todo o dinheiro que havia sido roubado para a sua casa de putas.
«Filha da puta,» disse.

Entretanto, na sala, o miúdo (que se encontrava deitado no sofá) acabara de abrir um olho. Ainda meio atarantado, sentou-se no sofá. Otomano observava-o, de uma cadeira, enquanto fumava cachimbo. O adolescente olhava à volta, e parecia conhecer aquela sala de algum lado, mas de onde?
«Onde é que estou?», perguntou.
«Numa grande merda,» respondeu-lhe Abílio, que entrou na sala e, de rompante, o agarrou pelos colarinhos.
Otomano permanecia sentado numa cadeira, fumando cachimbo, sem compreender tudo aquilo. «Com que então entras na minha casa, roubas o dinheiro que demorei anos a juntar e agora ainda recebes tratamento na casa que roubaste??!!»
«Eu... Eu posso explicar», disse o miúdo. «A minha avó está muito doente, precisa de uns pulmões novos. Só roubei a sua casa por causa disso».

Abílio largou os colarinhos do adolescente, do seu maço de tabaco puxou um cigarro, e acendeu-o. O miúdo olhava para ele, com cara de parvo. Nisto, num movimento fulminante, Abílio manda-lhe uma pêra na cara. O miúdo cai no chão.
«A tua avó que fume menos», disse Abílio ao miúdo inconsciente.
Otomano, por sua vez, ficou perplexo perante tudo aquilo. Foi então que, desligando o ser humano e ligando o escritor, compreendeu - nem todas as histórias podem acabar bem. Pelo menos para alguns, que para Abílio o futuro revela-se todo um esplendor de chuvas douradas e doenças sexualmente transmissíveis.

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

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