De cabeça baixa mas de olhos apontados às estrelas, avistando o céu num olhar sonhador, assim mantinha ele essa esperança cinzenta, mergulhada num baço nevoeiro ilusório. Quantos planetas, estrelas, constelações... que vida haveria neles? Era desta forma que Martim McMosca se perdia na imensidão desse uísque rasca que comprara no Minipreço. Bebia-o em pequenos goles, lentos, sentindo-lhe esse gosto amargo - o travo da solidão que conhecia bem.
Com o peito carregado de desilusões e remorsos, nada mais restava a Martim McMosca senão escrever. Registar, documentar, como forma de exorcismo dos seus erros irreparáveis, resultantes dessa fantasia escapista chamada DeLorean. Que mais eram aquelas viagens ao futuro, questiona-se hoje Martim, senão uma tentativa de escapar ao passado? De ignorar o presente?
Viajando pelo tempo, numa invenção do Doutor Américo ou na sua imaginação, Martim perdeu a vontade, o livre-arbítrio, e passou a viver num futuro e não no presente. E o futuro que um dia viu, nunca chegou a sê-lo. Por isso senta-se agora entre dias banais na esplanada do café "O Borra-Botas", observando a rotina daqueles que vivem do presente. Como ele gostaria de ter feito o mesmo, mas deixou escapar o futuro entre os dedos. Resta-lhe pois o pó dos livros, o testemunho inútil e desiludido nos seus poemas, que escreve para esquecer a monotonia do seu coração adormecido entre tempos. Um testemunho do que não foi e poderia ter sido. Saudade, na sua mais corrosiva forma.
Chegou a primavera e ouve-se na rua o chilrear dos pássaros. Esses mesmos pássaros que seguem também largando poias na calçada, carros e volta e meia na cabeça dos transeuntes. Martim observa da janela do seu bafiento quarto a beleza do mundo exterior, e decide-se em sair à rua. Caminha pelas ruas estreitas da cidade ao acaso, deslocado, como o homem na multidão de Poe. Ao seu largo vê passar um mundo que não lhe pertence, que não conhece, que não é seu. A sua condição solitária, reforçada pela sua falta de higiene, isolam-no do resto do mundo, e se não isolam é bom que o façam, já que às vezes tresanda mesmo dos pés.
Mas é com aquele cabelo desgrenhado, as botas encardidas e as unhas no tom castanho de quem andou a coçar o cu que, numa esquina, avista um anjo. Ou pelo menos assim lhe terá parecido.
'Jennifer,' disse Martim McMosca. 'Então, estás gorda?'
Jennifer não lhe respondeu, sorrindo apenas. A cara de Martim avermelhou.
'Desculpa, sabes que não sou bom nas palavras. As coisas só me saem bem nos poemas.'
'Não faz mal', disse-lhe Jennifer.
'Queres ir tomar um café?'
'Pode ser,' disse Jennifer.
Mas não o disse por gosto - talvez por piedade cruel para com este pobre ser moribundo.
Falaram das coisas que fizeram nos últimos vinte e cinco anos. De outros amores, de idas à praia, do facto de Martim se recusar em tomar banho. Até que, no meio da conversa, Martim se reconciliou com a expressão oral. Da sua boca saíram todas as palavras que há muito tempo queria que Jennifer ouvisse. Disse-lhe como viveu demasiado tempo no futuro, esquecendo o presente. Disse-lhe que por pensar que esse futuro estava já determinado pelas leis do universo, não insistiu mais no amor que os unia. Disse-lhe que viajava ao futuro para tentar esquecer o passado. Disse-lhe que sempre viveu em dois tempos e nenhum deles foi o presente. E que mesmo o seu passado fora um pretérito imperfeito.
Jennifer ouviu com atenção, e com o coração batendo depressa, sorriu-lhe. Então, um enorme estrondo se ouviu na rua, e um burburinho entre os transeuntes. Mas Martim McMosca reconhecia aquele barulho.
'É o DeLorean', disse a Jennifer. E precipitou-se para o exterior do café.
Do DeLorean estacionado no meio da estrada, Martim McMosca viu sair um jovem Martim. O jovem Martim dirigiu-se de imediato ao mais velho.
'Venho dar-te uma mensagem, velho Martim McMosca', disse o jovem.
'O que é?'
'Deves sair da casa onde vives, senão dentro de seis meses vais lá morrer incinerado num incêndio.'
Ao ouvir isto, Jennifer aproximou-se do mais velho Martim, enroscando o seu braço no dele.
'Não,' respondeu o mais velho Martim. 'Chega-me de viver dependente do que acontece no passado e no futuro. Desta vez, vou viver no presente. Tudo o que preciso, está aqui. Este cocó de pássaro no passeio, o cheiro a frango assado ali da churrasqueira, o hálito a morto do meu senhorio.'
E, ajoelhando-se, disse:
'Jennifer Patrícia, casas comigo?'
O Martim McMosca mais novo achou tudo aquilo deveras patético. Jennifer sentiu um arrepio na espinha, provocado por um pingo de água que caíra duma varanda. Então respondeu ao pedido de Martim.
'Martim', disse-lhe. 'Casarei, mas com duas condições: Primeira - tomas banho todos os dias. Segunda - fazes aquilo que o teu Eu mais novo disse e mudas de casa. Morreres incinerado e saberes que isso vai acontecer não me parece muito inteligente.'
Na cara do mais velho Martim McMosca desenhou-se um enorme sorriso, e levantou-se segurando as mãos de Jennifer. O mais novo Martim McMosca, que assistira àquele nojento momento de piroseira, vomitou na calçada a caldeirada de lulas do almoço.
Ao casamento de Martim e Jennifer McMosca veio gente de todo o lado, tempo histórico e verbal, como perturbadoras memórias vestidas em roupa da Fabio Lucci. Martim já não cheirava a bedum e chulé. Já Jennifer, continuava asseadinha.
À porta da igreja, um veículo espera pelo mais novo Martim McMosca. O jovem Martim despede-se dos noivos com um enorme abraço e, dirigindo-se ao DeLorean, recorda o que aprendeu nesta viagem que fez no tempo: um gajo deve, sempre que possa, lavar os pés.
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