Sunday, 8 November 2009

A Avenida Bacalhau




















A noite descia sobre a cidade, assolando-a com a sua aconchegante presença. Como a pele humana, que sempre vê a idade esculpir-lhe rugas, na cidade também com o tempo, as ruas lhe começaram a demarcar o corpo, como um mapa. Toda a cidade tem as suas ruas, toda a rua as suas pessoas, toda a pessoa o seu umbigo com surro - só que há umas que diz que lavam. Numa dessas ruas, onde a ensurdecedora ambiência das máquinas de escrever tem lugar, ouve-se o eco antigo de um arroto enviado sabe-se lá por quem.

Caminhando a passos certos, curtos, pausados, segue um homem vestido de forma impecável, com uma jaqueta bege muito jeitosinha e curta, adquirida talvez nos saldos. Este homem, no seu charme natural, em movimentos certeiros e propositados, acende um cigarro e ali pára, em frente à estátua de pechisbeque de Carlos Castro, mítico representante da imprensa cor-de-rosa. Ali paira também, como o aroma de um cadáver recente, uma gigantesca quantidade de coscuvilhice, naquela que é a rua de Raimundo Caroço - a Avenida Bacalhau.

É sempre no 'Paparazzo', snack-bar mais famoso da rua, que todos os jornalistas se encontram, na companhia de tarólogas, travestis e aspas. Ali, naquele pequeno espaço onde o cheiro de tabaco se mistura com Old Spice, discute-se a vida das famosas que mandaram esculpir os seus seios em silicone. E Raimundo Caroço, como é apanágio, discursa.
"Meus amigos, está um briol hoje que não se pode. Felizmente, permitam-me afirmar, comprei este casaco na Zara. Agora exceptuando isso, a sociedade está cansada da verdade. Todos os dias, nos noticiários, as pessoas são bombardeadas com guerra, morte e tragédia. É a verdade, mas as pessoas começam a ficar indiferentes a ela. E este monólogo está um esterco ao nível de um guião dos Morangos com Açúcar. Pois não é meus caros?"
Mas só se ouve o silêncio. Alguém solta um flato. Um homem, na casa dos 40 biqueira larga, aproxima-se de Raimundo, de mini na mão.
"Como é?" diz o homem.
"Cá estamos", responde Raimundo, coçando o cu.
"Que coisa é essa de que 'tavas para aí a falar pá, da verdade e do caraças?"
"Vivemos numa sociedade em que as pessoas estão cansadas da verdade, em que elas preferem mentiras coloridas a uma realidade cinzenta. É esse o nosso trabalho, dar à vida um tom cor-de-rosa".
"Mas o cor-de-rosa não é a cor dos paneleiros?"
"Talvez... na sua mente retrógada e estereotipada. Mas o cor-de-rosa não é a cor dos paneleiros. O cor-de-rosa é a cor dos...uh... ah bem, se calhar é mesmo a cor dos paneleiros".
Este que se dirigiu a Raimundo de mão numa mini dá pelo nome de Marsápio Robalo, e é um gajo. Mas quem sabe poderá vir a ser mais que isso, num futuro não muito distante.
"O meu projecto, caros amigos, é uma revista cor-de-rosa. Será um misto da Maria, Ana Mais Atrevida, Bravo, Sentinela, Gina e a Dica da Semana. Quem quer participar?" anuncia Raimundo Caroço, do alto do seu metro e sessenta e quatro.
"Quero eu, quero eu!" disse o Cão Júlio.
"Mas tu não és aquele cão da história da Carochinha?"
"Sou. Sei desenhar pilas".
"Então olha, podes ser o cartoonista. Alguém mais?"
Ao canto da sala, escondido da ASAE, um homem barbudo de pála no olho, de SG Gigante no canto da boca, prontifica-se:
"Conta comigo rapaz. Já fiz inscrições em campas".
"Muito bem, serás o nosso editor".

E assim, Raimundo reuniu meia-dúzia de tipos sem talento nenhum, ligou a uns amigos que tinha no PS e eles lá lhe desencantaram uma impressora, com que fabricaram a sua primeira edição. Chamaram-lhe, à revista, "Sarau". Não porque tivesse alguma coisa a ver com o assunto mas apenas porque acharam a palavra parva - que é. E rima com arroz pilau. Na capa, bem visível, encontramos a grande manchete desta primeira edição: "D. Duarte queima bigode num maçarico". Apesar das suas quatro curtas páginas, a revista Sarau foi um sucesso.
Na manhã do dia seguinte, quando Raimundo Caroço se preparava para abrir a porta das instalações da revista Sarau, repara num homem à esquina, segurando uma cana-da-índia. O indivíduo, é reconhecido por Raimundo como Barbério Pirraça, editor da revista "Pessoas de Bem". De cana-da-índia na mão direita e caixa de palitos do Modelo na esquerda, Barbério aproxima-se de Raimundo.
"Com que então és tu o sacana responsável por aquele pedaço de esterco jornalístico que bebe da aldrabice?"
"Não lhe chamaria aldrabice, mas antes criatividade" responde Raimundo.
"Só te venho avisar meu maricas, que com a mentira não vais longe".
E de cana-da-índia caída sobre o ombro direito, Barbério Pirraça abandona a entrada do edifício, trauteando um tema antigo dos D'Arrasar. A revista de Barbério era conhecida no meio pela sua independência e respeito pelo código deontológico dos jornalistas.
Num quarto de um apartamento dos subúrbios, imperturbável pelo ressonar do cão do vizinho do lado, o reggaeton do vizinho de baixo e o barulho do micro-ondas do vizinho de cima, Raimundo dorme. Isto até que toca o telefone, um daqueles de disco rotativo, a única coisa que o faz realmente acordar. Raimundo levanta-se rapidamente da cama, afasta os lençóis em turbilhão e dirige-se ao corredor, onde o telefone se encontra.

"Sim?" atende Raimundo, resgatando um macaco com o mindinho "Tá bem, eu vou já para aí". Assim que desliga, caindo no seu ombro e deslizando sobre um dos seus braços, um esquilo daqueles que vivem nos cereais.
"Que é que se passou?" perguntou o esquilo, abanando o rabo.
"O Barbério Pirraça. Publicou uma notícia a dizer que a minha revista é uma farsa."
"O que é que vais fazer agora?"
"Agora vou à guerra. Vou publicar mais aldrabices, que os meus amigos da política lá me vão agradecendo com presuntos e qualquer dia coisas tipo dinheiro e putas."
Pode parecer estúpido uma conversa entre um ser humano e um esquilo a meio de uma história, e é. Este esquilo chama-se Vítor Gargalo e mantém com Raimundo Caroço uma relação homossexual. Já Raimundo mantém com Vítor uma relação zoófila homossexual. A sociedade tem dificuldade em aceitar isto, o amor entre um director de uma revista merdosa e um ex-serralheiro que é esquilo.

Chegado à redacção da revista Sarau, Raimundo vê o desalento na cara dos seus trabalhadores. As aldrabices que inventaram, com recurso ao haxixe marado de um dealer chamado Zé da Burra, estão agora a perder credibilidade. Até parece mentira.

"Caros amigos, plantas de plástico e coleccionadores de pêlos púbicos, não podemos permitir que este golpe baixo da concorrência nos desloque a tomatada até à testa. Temos uma obrigação para com os nossos leitores de desinformar, aldrabar, enganar, mentir e não sei mais o quê. Eu sei que é difícil para muitos de vós continuar esta caminhada, principalmente aqueles que perderam as pernas na Guerra Colonial e no programa Minas e Armadilhas do Júlio César mas, uma coisa eu vos digo, está hoje um tempo de categoria para ir pescar achigã!"

Inspirados pelas palavras de Raimundo, os trabalhadores da revista Sarau ovacionam como doidos o homem, levam-no aos ombros e enfiam-lhe três beatas de cigarro em cada narina. Isto parecendo que não, importuna uma pessoa.
Pela redacção aspada da revista Sarau adentro entra um dos funcionários, esbaforido, e com uma t-shirt que tem a inscrição "Diabetes". Nada a ver.
"Raimundo, alguém me furou os pneus do Fiat 600!"
Furibundo, Raimundo Caroço atira uma chapada na mesa que, por acaso, tinha um pionés de bico para cima.
"Fosca-se pá piquei a mão!!!"
No meio de toda esta confusão, por uma das janelas da redacção, entra um sujeito misteriosamente parvo vestido à ninja vermelho dos Power Rangers. Em bicos de pés e à socapa, como é apanágio do praticante de ninjutsu, o indivíduo dirige-se à casa-de-banho. Entretanto Raimundo, após despejar metade da embalagem de Betadine na mão e beber o resto com groselha, resolve telefonar à polícia. Um dos funcionários empresta-lhe o telemóvel.

Mas eis que, quando Raimundo se preparava para marcar o último dígito, um barulho ensurdecedor se ouve na porta da redacção. Uma primeira batida, forte. Uma segunda. Uma terceira e, pumba! Lá se foi a porta da redacção para o maneta. Nem sei bem para que raio o maneta precisa da porta, mas tá. E quem é que entra pela redacção, quem é? Nem mais nem menos do que Barbério Pirraça, todo nu e com um cinto de dinamite à cintura.
"Ai Ai que eu tenho uma bomba! Ai que ainda me vou barricar e não sei quê!"

Tal e qual Manuel Subtil, Barbério Pirraça, num acto de profundo desespero, ameaça rebentar com coisas. Um silêncio fúnebre invade a sala rapidamente como um gás daquelas granadas que um gajo vê nos filmes e depois ganha medo. Raimundo Caroço olha para Pirraça com aquela cara de quem diz "vou-te amassar os dentes com um maço de bater calçada meu borrego assexuado". Pirraça olha para Raimundo com aquela cara de quem está aflito para ir efectuar o cocó e, aproximando o dedo indicador direito de um comando de uma televisão Nordmende daquelas bem antigas que se encontra colado à dinamite, prepara-se para mandar tudo para o galheiro.

Então por detrás de Pirraça, naquele jeito silencioso próprio dos praticantes de ninjutsu, o ninja dos Power Rangers encosta-lhe a lâmina da katana à bochecha direita do rabo.
"Não te mexas Pirraça cona da mãe, senão corto-te a bochecha direita do rabo e dou-a de comer ao meu pastor alemão!" avisou o ninja, num sotaque típico da Beira Interior.
Sem escolha aparente, Pirraça, assume que o bombismo-suicida não é aquilo para o qual nasceu. Rende-se, tirando o cinto de dinamite, que acaba por se revelar um mero conjunto de salsichas alemãs do Lidl pintadas de vermelho à pistola. Pirraça começa a chorar.

"Sabe Raimundo, há algo que lhe queria confessar. Quando li a sua revista, fiquei... tão emocionado com a subserviência ao poder político, a falta de rigor jornalístico e a futilidade de certos artigos que, inconscientemente, fiquei a admirá-lo. Mas não pude admiti-lo. O meu orgulho não deixou". E, aproximando-se de Raimundo com a cara inundada em lágrimas, baba e ranhoca, Pirraça abraça-o. Apesar de se ter tentado rebentar na sua redacção com salsichas do Lidl, Raimundo perdoa-o.
"Queres vir comigo à pesca do achigã?" pergunta Raimundo. Barbério Pirraça, no meio da sua nudez lacrimejante e melancólica, responde.
"Sim, meu querido. Fá-lo-ei com todo o gosto".

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